Autor: Cristina H. Sarraf
Segundo Kardec, projeto 1868, alguns pontos deveriam ser pacíficos entre os espíritas: os Princípios que o constituem. Alterar isto é descaracterizá-lo.
Mas analisando amplamente o desenvolvimento aplicativo desses Princípios, penso que um outro conceito também está no rol dos inquestionáveis: o significado de Jesus como modelo de conduta humana ( O Livro dos Espíritos – 625) e não um chefe religioso ou sinônimo de religião.
Imaginando que a maioria dos espíritas entendam Jesus dessa maneira, teremos uma boa quantidade de pessoas, estudantes do Espiritismo, saudavelmente cotejando sua forma de ser com a demonstrada por Jesus, e buscando melhorar-se através do entendimento da filosofia científica espírita.
Será esta a nossa realidade?
Impossível saber quantos têm essa consciência. Mas é possível saber que essa não é, ainda, a maioria.
Por que?
Porque advindos das encarnações passadas onde valores religiosos predominaram, não apenas pelas escolhas conscienciais, porem muito mais pela imposição através do medo e das retaliações -fatos esses historicamente registrados- o significado real de Jesus, para muitos foge do conceito espírita. Fica, por hora, esse conceito no campo religioso, embora Jesus não tenha nada a ver com isso, já que foi usado como figura central de religiões após a sua morte, de forma alheia a sua vontade. Se ele quisesse estabelecer uma religião teria feito isso pessoalmente, porque não lhe faltaram recursos, razões, seguidores e circunstâncias.
Analisemos: Jesus nasceu judeu, ou seja, numa família cuja vida, no aspecto que fosse era intimamente interligada às práticas religiosas, cujas regras ganharam cunho legislativo com Moisés, e assim se mantiveram, sustentadas pelos sacerdotes e pela classe dirigente, os fariseus.
Certamente Jesus foi educado dentro desses valores. Se é real o episódio em que ele, adolescente, esteve no templo de Jerusalém, discutindo entendimentos das lições do Torá, com os rabinos, isso confirma a formação que recebeu.
Depois não sabemos, mas ao assumir a tarefa pública, suas proposições indicavam divergência, quando não oponência as que caracterizam o judaísmo.
Mas também ele não defendia ideias religiosas romanas, nem hinduístas, nem gregas, nem chinesas, até porque apresentou de forma diferenciada a essência do pensamento humano que é o conceito de Deus. Tomando-o como pai maior e de todos, sem exceção, abriu larga fenda nas concepções judaicas que têm na figura do pai o maior expoente da família. Só que esse deus-pai de Jesus, contrariando o pai judeu, é um pai de todos, até mesmo dos inimigos e dos adversários da raça e da filosofia de vida dos descendentes das doze tribos de Jacó.
Então, qual era a religião de Jesus, quando adulto?
Nenhuma. Ou se fizerem questão, apenas aquela sensação natural de integração com um todo infinitamente grandioso.
Ele reconhecia o Criador com amor e naturalidade, reportava-se a suas leis, mostrava-as através de seus ensinos e convocava as pessoas a viverem respeitando a si e a todos. Quando curava alguém, dizia que a própria pessoa havia se curado, nunca se referiu a Deus ter feito isso. Tua fé te salvou é o mesmo que dizer: tua confiança na possibilidade de cura promoveu-a, através de mim.
Entender que se referia a fé em Deus é forçar bem a interpretação… Até porque o deus dos judeus não combinava nada com o entendimento dele sobre o Criador. Senão, ao invés de pai, ou seja, o que cria e protege, o que ama incondicionalmente a todos, Jesus teria sucumbido ao conceito do deus guerreiro e vingativo, pessoal e temperamental de Moisés.
Por outro lado, conceber a existência de um Criador nada tem a ver com religião e sim com uma postura filosófica escolhida dentre outras. Ninguém precisa ser religioso para admitir que há um Deus, que não é Homem nem Espírito, porque está acima de tudo, sendo o Criador das causas primeiras.
Jesus não levava as pessoas para dentro dos templos para orar, como muito bem disse o ex-padre Germano. Falava com elas nas ruas, ao pé dos montes, nas beiras dos rios, nas encostas das montanhas, entre as árvores e sobre as pedras, portanto, junto à Natureza.
Jesus não convidava as pessoas a orar e sim a sentir e pensar. Abria-lhes novas frentes de raciocínio e sem linguagem rebuscada, ocultista ou solene, contava- lhes histórias conectadas com suas vidas diárias.
Com simplicidade mostrou o valor que dava ao coração puro e à naturalidade de ser si mesmo, quando refere-se às crianças, que nunca foram apartadas de suas alocuções, bem como também não o foram as mulheres. Contrariando os usos da época, tinha-as entre seus seguidores, como criaturas iguais.
Jamais Jesus indicou, a quem quer que fosse, ter rituais e preceitos como regras de vida. Mas quebrou, publicamente, os que pode, curando doentes no sábado e comendo sem lavar as mãos, não por descaso e sim para que aprendêssemos que atos padronizados nos impedem de viver no presente.
Visitou o lar de um publicano considerado desonesto, mas não entrou no lar dos que arrotavam virtudes.
Alertou para a oração silenciosa, sem palavras específicas e tradicionais, mas ditada pelo íntimo da criatura.
Sem nunca ter condenado o comportamento de alguém, até porque um Espírito superior não faria isso, mostrou que diferentes atitudes trazem diferentes resultados e deixou bem claro que o medo anula as potencialidades pessoais, caso típico da parábola dos talentos.
Nunca indicou ao povo que buscasse orientação e conforto junto aos sacerdotes, ao contrário, colocou Nicodemos, por exemplo, frente a sua própria hipocrisia, assim como fez com os que chefiaram seu julgamento e crucificação.
Vejamos agora: uma religião tem regras fixas, sacerdotes, rituais, valores tradicionais e conhecimentos ocultos ao povo. Há também de ter um templo, onde essas práticas acontecem.
Jesus não ensinou, não demonstrou e não exemplificou nada que se parecesse com isso.
No entanto, havia nele o mais profundo respeito a cada criatura, ao valor de cada um, como deixou claro no que disse dos dentes do cachorro morto; bem como mostrou o mesmo solene respeito em relação à Natureza, à grandeza do Criador e das leis que regem a Vida. Tanto é que rasgando o véu da Verdade, ele se comprometeu com essa encarnação missionária e revolucionária, no sentido espiritual, filosófico e científico, prático.
Será que precisamos, nós os espíritas, continuar a vê-lo como representante religioso?
Seria mais coerente, já que queremos seguir suas pegadas e seus exemplos, libertar-nos desses preconceitos e ideias arraigadas e medrosas, e senti-lo como um dos que caminhou antes de nós; colocando-nos semelhantes a ele, ou seja, como criaturas advindas do Criador, e portanto, cocriadores do Universo, segundo as leis divinas, cada um em seu atual estágio evolutivo.
Deixemos que aflore n´alma, a profunda admiração pela grandiosidade infindável dessas Leis, que ensinadas de novo pelo Espiritismo, agora de forma amplificada e renovada, podem ser observadas, solenemente, funcionando em nós mesmos, em todos e tudo que nos cerca.
Uma filosofia científica de vida, feita de leis universais, sem regras e normas, vivida segundo o entendimento de cada um, que nos proporciona toda a melhoria comportamental que quisermos, como consequência de nossas necessidades e possibilidades. Eis o Espiritismo, que é, segundo o Espírito verdade, a única tradição verdadeiramente cristã.