Autor: Marcelo Teixeira
Há um tempo, compartilhei nas minhas redes sociais uma postagem que dizia não importar o que de grave esteja acontecendo no mundo (guerras, crimes, fanatismo etc.). Motivo: o que as pessoas querem mesmo é pagar as contas em dia e morrer.
Essa afirmativa me levou a vários locais. Uns físicos, outros literários. Como representante do movimento espírita progressista, já participei de alguns atos em praça pública em prol da democracia e contra autoritarismo, racismo, homofobia e congêneres. Em todos, observei a quantidade de pessoas que passavam sem dar importância ao que estava acontecendo. Não as condeno. Também já agi dessa forma. Afinal, os compromissos são tantos! Contas a pagar, horários a cumprir, levar e buscar os filhos na escola, questões profissionais, condução para pegar, trânsito engarrafado, supermercado… Essa seria a parte física da questão.
A primeira parada literária foi a canção “Panis Et Circenses” (Pão e Circo), de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Gravada pelo grupo Os Mutantes em 1968, a música se transformou num dos ícones do Tropicalismo, movimento cultural que sacudiu a década de 1960. Diz ela:
“Eu quis cantar
Minha canção iluminada de sol
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
*
Mandei fazer
De puro aço luminoso um punhal
Para matar o meu amor e matei
Às cinco horas na avenida central
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
*
Mandei plantar
Folhas de sonho no jardim do solar
As folhas sabem procurar pelo sol
E as raízes procurar, procurar
Mas as pessoas na sala de jantar
Essas pessoas na sala de jantar
São as pessoas da sala de jantar
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer.”
Crítica sofisticada à acomodação da sociedade brasileira à época da ditadura militar, “Panis Et Circenses” permanece atual e válida tanto para nós como para os demais habitantes do planeta. Afinal, a política do pão e circo remonta à Roma antiga e provém de um verso do escritor Juvenal, que criticava o povo da hoje capital da Itália, mais interessado em comer e se divertir do que nas questões políticas.
Embora tenha consultado um site que destrincha a letra à luz dos tensos acontecimentos políticos da época, irei me deter no simbolismo da alienação nossa de cada dia.
Na primeira estrofe, o protagonista da canção fala que tentou cantar coisas belas e positivas e também buscou esclarecer e iluminar as consciências alheias. No entanto, as famílias estão ocupadas demais com suas salas de refeições, rotinas e distrações costumeiras.
Vem, então, a segunda estrofe, na qual Caetano e Gil radicalizam, pois quem narra a canção diz que mandou fazer um punhal e matou o grande amor em praça pública na hora do rush. A violência, todavia, estava (e ainda está, infelizmente) tão naturalizada que ninguém dá importância ao ato.
Por fim, o porta-voz planta sonhos (poesia, letra e música) nos jardins de um célebre solar carioca que, então, abrigava vários artistas recém-chegados à Cidade Maravilhosa. Artistas estes que foram responsáveis por grandes mudanças na cena cultural brasileira. Plantas que sabiam procurar pelo sol para poder crescer. Em vão. Novamente, as pessoas ocupadas apenas com o dia a dia não estavam interessadas em reagir à mesmice e tentarem dar um sentido maior às suas vidas monocórdias. Todas ocupadas somente em nascer e morrer.
Prosseguindo nas paradas literárias, recorro ao livro Reforma Íntima – a evolução em fase regenerativa, do espírito Cairbar Schutel. Trata-se de uma obra na qual o Bandeirante do Espiritismo responde a várias perguntas dos médiuns que a psicografam. No capítulo dois, indagam se existe felicidade no mundo dos maus. Um mundo como o nosso, por exemplo, onde espíritos de baixo desenvolvimento moral como nós acabam assimilando o mal com mais facilidade. Cairbar dá uma complexa resposta, da qual ressalto a afirmação de que não existe um mundo mau ou dominado pelo mal. O que vemos, na nossa atualidade, é grande parte da população mundial às voltas com várias provas e expiações difíceis e complexas. Por isso, segundo ele, nem pensam em prejudicar o próximo, já que precisam resolver suas próprias questões.
Não há como comentar o que Cairbar responde sem tecer considerações acerca do capitalismo, sistema econômico predominante no mundo atual. Baseado na propriedade privada, nos meios de produção (terras, máquinas e indústrias, por exemplo), no lucro a qualquer custo e na acumulação de riquezas, o capitalismo resulta em divisão de classes sociais (empresários e proletários), distribuição desigual de bens e de renda, competição e, por tabela, incertezas quando a trabalho permanente e estável, acesso à moradia, saúde, lazer e educação de qualidade etc. Isso para ser bem sucinto.
O que vemos ao redor, dentro de nossos lares e de nós mesmos é um modo de vida que nos toma inseguros em relação ao amanhã e consome nossas energias na busca diária pelo pão de cada dia. Um cenário que, convenhamos, rouba nosso tempo e nossa saúde física e mental. A consequência é uma sociedade envolvida não somente com resgates individuais, mas também consumida por um cotidiano que, conforme ressalta Cairbar, nos envolve em provas e expiações inerentes à imperfeição do sistema capitalista e não deixa muito espaço para que pensemos formas mirabolantes de prejudicar o próximo, a não ser que sejamos criaturas bem nefastas, como uma minoria infeliz (mas ruidosa), que vem causando toda sorte de desgraças no mundo.
Só que aí recorremos a O livro dos espíritos, de Allan Kardec. Mais precisamente, na parte que aborda a questão do bem e do mal, capítulo destinado à Lei Divina ou Natural (Lei de Deus). Na questão 642, Kardec pergunta se, para agradar a Deus e assegurar boa posição futura, basta ao homem não praticar o mal. A resposta dos benfeitores espirituais é certeira: “Não: cumpre-lhe fazer o bem no limite de suas forças, porquanto responderá por todo mal que haja resultado de não haver praticado o bem”.
A argumentação prossegue na pergunta 643, na qual Kardec questiona se haverá quem, pela posição que ocupa, não tenha condição de fazer o bem. Outra resposta contundente: “Não há quem não possa fazer o bem. Somente o egoísta nunca encontra ensejo de praticá-lo”.
Aparentemente parece haver contradição entre Cairbar e Kardec. Notemos, no entanto, que o primeiro fala em falta de tempo para praticar o mal enquanto o segundo diz que não fazer o bem já é uma forma de dar oportunidade para o mal proliferar. A questão é que o capitalismo estressante em que estamos mergulhados nos torna mais egoístas, utilitaristas e, por conseguinte, sem tempo e sensibilidade para enxergar o outro como companheiro de jornada. Principalmente quando levamos em conta as provas e expiações que são geradas por ele e que acabam nos tornando tensos, impacientes, amedrontados e até pusilânimes. Um total contraponto a Jesus, que atendia e acolhia a todos. Justamente por isso, foi perseguido e condenado pelos poderosos de seu tempo e também ignorado pelos que preferiram se manter na cômoda indiferença.
A pergunta de O livro dos espíritos que mais me chama atenção, todavia, é a 932, à qual, volta e meia, recorro. É em sua argumentação que tentarei encontrar o fiel da balança. Nela, Kardec questiona por que a influência dos maus é mais forte que a dos bons. A resposta diz que a razão reside no fato de os bons serem fracos. Por isso, os maus se sobressaem devido à audácia e à intriga. Quando os bons quiserem, serão em maioria.
Essa omissão à qual os benfeitores espirituais se referem pode ser interpretada de várias formas, a meu ver. Temos a omissão dos que simplesmente não querem se envolver. A dor do próximo e os problemas que o mundo enfrenta não lhes interessam, seja por indiferença ou porque crerem já ter problemas demais. Há os que se omitem por apatia. A vida já exigiu tanto deles que, a certa altura, preferem se manter à parte. É uma espécie de omissão desesperançada. Há também os que, conforme ressalta Cairbar Schutel, estão tão envolvidos em questões pessoais e familiares que têm a ver com débitos de vidas pretéritas (Quem não?) e também com os problemas trazidos por uma sociedade desigual, materialista e competitiva que, de fato, não têm nem tempo em fazer o mal, que dirá o bem! Soma-se a essas variantes omissas o fato de boa parte da humanidade ainda não fazer uma ideia concreta do que realmente seja fazer o bem. É algo que ainda deixa muitos de nós cheios de dedos, como se não soubéssemos onde pôr a mão para dar início a algo que resulte num bem comum.
E como todos nós carregamos um misto de todos esses motivos, cá estamos às voltas tanto com a necessidade de atuar para que uma sociedade mais equânime floresça – apesar dos percalços íntimos e das dores coletivas – como com a ocupação de nascer e morrer, ou seja, pagar as contas, educar os filhos, manter-se atualizado na profissão, zelar pela harmonia familiar etc.
Não é uma tarefa fácil deixarmos de ser menos sala de jantar e mais povo na rua (isto é, lúcidos e participativos). Afinal, o modus operandi que estrutura a sociedade capitalista ocidental não será extinto da noite para o dia. Requer mudança de mentalidade, educação questionadora e libertadora desde as bases, participação cada vez mais efetiva na vida política – não só pelo voto consciente, mas no acompanhamento das pautas –, mudanças profundas na relação patrão/empregado, novas formas de organização social e econômica… Enfim, a lista é longa, e boa parte dela irá se apresentando à medida que formos transformando o mundo num lugar mais participativo e solidário e menos competitivo e individualista.
Urge, porém, estarmos dispostos para tanto. Caso contrário, seremos os omissos apáticos e conformados da sala de jantar que serão levados de roldão pelos ventos das mudanças. Nesse caso, não haverá saleiro, jarra, bandeja ou comensal que resista. Que tal tomarmos tenência desde agora para surfarmos nesses ventos que já começaram a soprar?
Bibliografia
1. ARRUDA, Renata – Panis Et Circenses: significado do clássico de Os Mutantes. Disponível em: LINK-1
2. GLASER, Abel; GLASER, Adriana – Reforma íntima: a evolução em fase regenerativa, 1ª edição, 2018, Casa Editora O Clarim, Matão, SP.
3. KARDEC, Allan – O livro dos espíritos, 60ª edição, 1984, Federação Espírita Brasileira (FEB), Brasília, DF.
4. MENEZES, Pedro – Capitalismo. Disponível em: LINK-2
O consolador – Ano 18 – N 869 – Artigos