Revista Espírita, setembro de 1859
Extraímos as passagens seguintes da carta de um de nossos correspondentes de Bordeaux:
“Eis, meu caro senhor Allan Kardec, um novo relato de fatos muito extraordinários, e que vos submeto com o pedido de consentir verificá-los, evocando o Espírito que é o seu autor.
“Uma jovem senhora, que chamaremos senhora Mally, foi a pessoa por cujo intermédio ocorreram as manifestações que formam o assunto desta carta: Essa senhora mora em Bordeaux e tem três filhos.
“Desde a sua tenra idade, em torno de nove anos, ela teve visões. Uma noite, entrando em sua casa com a sua família, viu no ângulo de uma escada a forma muito distinta de uma tia morta há quatro ou cinco anos. Ela soltou uma exclamação: Ah! minha tia! E a aparição desapareceu. Dois anos depois, ela ouviu ser chamada por uma voz que acreditou reconhecer pela de sua tia, e tão fortemente que não pôde deixar de dizer:
Entrai, minha tia! Não se abrindo a porta, ela mesma foi abrir, e não vendo ninguém, desceu para junto de sua mãe para informar-se se alguém havia subido.
“Depois de alguns anos, encontramos essa senhora de posse de um guia ou Espírito familiar, que parece encarregado de velar sobre sua pessoa e de seus filhos, e que faz uma multidão de pequenos serviços na casa, entre outros o de despertar os doentes, à hora fixada, para tomar a tizana, ou aqueles que querem partir; ou bem, para certas manifestações, ele realça o moral. Esse Espírito tem um caráter pouco sério; entretanto, ao lado de marcas de leviandade, ele deu provas de sensibilidade e afeição. A senhora Mally o vê comumente sob a forma de uma chama, ou de uma grande claridade; mas ele se manifesta aos seus filhos sob uma forma humana. Uma sonâmbula pretende ter-lhe dado esse guia, sobre o qual parece ter influência. Quando a senhora Mally fica algum tempo sem se ocupar de seu guia, ele toma o cuidado de se fazer lembrar a ela por algumas visões mais ou menos desagradáveis. Uma vez, por exemplo, quando ela descia sem luz, percebeu sobre o patamar um cadáver coberto com um lençol e luminoso. Essa senhora tem uma grande força de caráter, como veremos mais tarde; todavia, não pôde defender-se de uma impressão penosa com essa visão; e, fechando vivamente a porta de seu quarto, ela afastou-se para o de sua mãe. Outras vezes, sentia-se puxada pelo seu vestido, ou relada como por uma pessoa ou algum animal, oprimindo-a.. Essas impertinências cessavam desde que ela dirigisse um pensamento ao seu guia, e, de sua parte, a sonâmbula repreendia este último e proibia-o de atormentá-la.
“Em 1856, a terceira filha da senhora Mally, com a idade de quatro anos, caiu doente, no mês de agosto. A criança estava constantemente mergulhada num estado de sonolência, interrompido por crises de convulsões. Durante oito dias, eu mesmo vi a criança parecendo sair do seu acabrunhamento, tomar um rosto sorridente e feliz e os olhos semi-fechados, sem olhar para aqueles que a cercavam, estender sua mão, com um gesto gracioso, como para receber alguma coisa, levar à boca e comer; depois agradecer com um sorriso encantador. Durante oito dias, a criança foi sustentada por essa alimentação invisível, e seu corpo retomara sua aparência de frescor habitual. Quando ela pôde falar, pareceu que ela saiu de um longo sono, e contou maravilhosas visões.
“Durante a convalescença da criança, pelo dia 25 de agosto, ocorreu, nessa mesma casa, a aparição de um agênere. Pelas dez e meia da noite, a senhora Mally, levando a pequena pela mão, descia uma escada de serviço, quando ela percebeu um indivíduo que subia. A escada estava perfeitamente iluminada pela luz da cozinha, de modo que a senhora Mally pôde muito bem distinguir o indivíduo, que tinha todas as aparências de uma pessoa vigorosamente constituída. Ambos chegados ao patamar ao mesmo tempo, encontraram-se face a face; era um jovem de rosto agradável, bem vestido, a cabeça coberta com um boné, e tendo à mão um objeto que ela não pôde distinguir. A senhora Mally, surpresa com esse encontro inesperado, a essa hora e numa escada, oculta, considerou-o sem dizer uma palavra e sem mesmo perguntar-lhe a que veio. O desconhecido, de seu lado, considerou-a um momento em silêncio, depois girou nos calcanhares e desceu a escada esfregando as barras da rampa com o objeto que levava à mão e que fazia o mesmo ruído como se fora uma varinha. Apenas ele desapareceu e a senhora Mally se precipitou no quarto onde eu me encontrava nesse momento, e gritou que um ladrão estava na casa. Colocamo-nos à procura, ajudadas pelo meu cão; todos os cantos foram explorados; assegurou-se que a porta da rua estava fechada e que ninguém pôde se introduzir, e que, aliás, não se poderia fechar sem ruído; era pouco provável, de resto, que um malfeitor viesse numa escada iluminada e a uma hora na qual estava exposto a encontrar, a cada instante, as pessoas da casa; por outro lado, como o estranho se encontrara nesta escada que não serve ao público; e, em todos os casos, se se enganasse, teria dirigido a palavra à senhora Mally, ao passo que lhe voltou as costas e se foi tranquilamente, como alguém que não tivesse pressa e nem estivesse embaraçado em seu caminho. Todas essas circunstâncias não puderam nos deixar dúvida sobre a natureza desse indivíduo.
“Esse Espírito se manifesta, frequentemente, por ruídos tais como o de um tambor, golpes violentos no fogão da cozinha, golpes de pé nas portas que então se abrem sozinhas, ou um ruído semelhante ao de pedras que fossem lançadas contra as vidraças.
Um dia a senhora Mally estava na porta de sua cozinha, e viu a de um escritório em frente se abrir e se fechar, várias vezes, por uma mão invisível; outras vezes, estando ocupada em soprar o fogo, sentiu-se puxada pelo seu vestido, ou quando subia a escada ou a agarrava pelo calcanhar. Várias vezes, escondeu suas tesouras e outros objetos de trabalho; depois, quando já tinha muito procurado, eram-lhe depositados sobre os joelhos. Um domingo, estava ocupada em introduzir um dente de alho numa perna de carneiro; de repente, ela sente arrancar-lho dos dedos; crendo haver deixado cair, procurou-o inutilmente; então, retomando a perna de carneiro, ela encontrou a casca picada em um buraco triangular, cuja pele estava rebaixada, como para mostrar que uma mão estranha a havia colocado ali, intencionalmente.
“A primogênita dos filhos da senhora Mally, com a idade de quatro anos, estando passeando com sua mãe, esta percebeu que sua filha conversava com um ser invisível, que parecia pedir-lhe bombons; a menina fechava a mão e dizia sempre:
– Eles são meus, compre-os se tu os queres.
A mãe admirada perguntou-lhe com quem falava.
– É, disse a criança, esse jovem que quer que lhe dê meus bombons.
– Quem é esse jovem? Perguntou a mãe.
– Esse jovem que está aqui, a meu lado.
– Mas eu não vejo ninguém.
– Ah! Ele partiu. Ele estava vestido de branco e todo frisado. “Uma outra vez, a pequena doente, de quem falei mais acima, divertia-se fazendo galinhas de papel. Mamãe! mamãe! disse ela, faça, pois, parar esse menino que quer pegar o meu papel.
– Quem? disse a mãe.
– Sim, esse menino que pegou o meu papel; e o menino se pôs a chorar.
– Mas onde está ele?
– Ah! Ei-lo que se foi para a esquina. Era um jovem todo negro. “Essa mesma jovem saltou um dia sobre a ponta dos pés e perdeu o fôlego, apesar da proibição de sua mãe, que temia que isso lhe fizesse mal. De repente, ela se deteve gritando: “Ah! o guia de mamãe!”
Perguntou-se-lhe o que isso significava; ela disse que viu um braço detê-la, quando ela saltava, e forçou-a a manter-se tranquila. Acrescentou que não teve medo, e que em seguida pensou no guia de sua mãe. Os fatos desse gênero se renovam frequentemente, mas tornaram-se familiares para as crianças, que não lhes concebem nenhum medo, porque o pensamento do guia de sua mãe lhes vem espontaneamente.
“A intervenção desse guia manifesta-se em circunstâncias mais sérias. A senhora Mally alugara uma casa com jardim na localidade de Caudéran. Essa casa estava isolada e cercada de vastas campinas; ela morava somente com seus três filhos e uma instrutora.
A comunidade, então, estava infestada de bandidos que cometiam depredações nas propriedades vizinhas, e tinham, naturalmente, manifestado preferência por uma casa que sabiam habitada por duas mulheres somente; assim, todas as noites, vinham pilhar e tentar forçar as portas e as janelas. Durante três anos, que a senhora Mally morou nessa casa, ela teve transes continuados mas, cada noite, ela se recomendava a Deus, e seu guia, depois de sua prece, manifestava-se sob a forma de uma centelha. Várias vezes, quando, durante a noite, os ladrões faziam suas tentativas de arrombamento, uma súbita claridade iluminava o quarto, e ela ouvia uma voz que lhe dizia: “Nada temais; eles não entrarão;” e, com efeito, jamais conseguiram penetrar. Contudo, para mais precaução ela munia-se de armas de fogo. Uma noite que os ouviu rondar, atirou sobre eles dois tiros de pistola que atingiram um deles, porque ela o ouviu gemer, mas no dia seguinte havia desaparecido. Esse fato foi contado nestes termos num jornal de Bordeaux:
“Foi-nos foi contado um fato que denota uma certa coragem da parte de uma jovem morando na comuna de Caudéran:
“Uma senhora que ocupa uma casa isolada nessa comuna tem com ela uma senhorita encarregada da educação de vários filhos.
“Essa dama fora numa das noites precedentes, vítima de uma tentativa de roubo. No dia seguinte concordou-se que se vigiaria, e que, se necessário, velar-se-ia durante a noite.
“O que foi convencionado foi feito. Por isso, quando os ladrões se apresentaram para arrematar sua obra da véspera, encontraram quem os recebesse. Somente tiveram a precaução de não mais estabelecer conversação com os habitantes da casa sitiada. A senhorita, da qual falamos, tendo-os ouvido, apressou-se em abrir a porta e dar um tiro de pistola que deveu atingir um dos ladrões, porque, no dia seguinte, encontrou-se sangue no jardim.
“Até aqui não se descobriu os autores dessa segunda tentativa.” “Não falarei senão por memória de outras manifestações que ocorreram nessa mesma casa de Caudéran, durante a estada dessas senhoras. Durante a noite, frequentemente, ouviam-se ruídos estranhos, semelhantes ao de bolas rolando sobre as tábuas, ou madeiras da cozinha lançadas por terra e, todavia, pela manhã tudo estava numa ordem perfeita.
“Podeis, senhor, se julgardes a propósito, evocar o guia da senhora Mally e interrogá-lo sobre as manifestações que acabo de vos fornecer. Podeis, notadamente, perguntar-lhe se a sonâmbula que pretendeu dar esse guia tinha o poder de retomá-lo, e se ele se retiraria no caso em que esta viesse a morrer………….”