Autor: Marcus Vinicius de Azevedo Braga
Allan Filho é um grande cantor e compositor do cancioneiro espírita, representante dileto de uma certa geração que marcou posição nesse sentido no Estado do Rio de Janeiro e, por que não, no Brasil. Nela transitaram Marielza Tiscate, Ariovaldo Filho, Espelho da Alma e tantos outros que vou injustamente esquecer aqui, e que contribuíram muito com essa forma de expressão no nosso segmento, com atenção especial ao público jovem.
Dentre as suas composições, muito popularizada é aquela chamada “Na porta de Damasco”, parceria com os amigos Carlos Alexandre (In Memoriam) e Sérgio Paulo, e me refiro assim com aproximação pois tive a oportunidade de conhecer todos os três pessoalmente. Figurinha fácil em eventos espíritas, a música retrata com singela poesia as reflexões de Paulo de Tarso na entrada da cidade de Damasco, entremeada com as reflexões do homem moderno, tão cheio de conhecimento e ao mesmo tempo, repleto de dúvidas.
Vamos então, de forma inusitada para um artigo, fazer uma leitura comentada dessa letra, permeando o título desse texto, que é ideia do autoconhecimento frente aos desafios que a espiritualidade espera de nós em cada encarnação.
Senhor, em Seu nome… Senhor, em Seu nome…
Eu falava às pessoas, jogava as sementes,
Plantava e colhia paz, mas sentia falta de algo mais.
Eu fazia quase tudo e hoje tudo é quase nada…
Frente à obra e seu Criador, sinto não sabemos dar valor.
Faltava me mudar…
Nesse trecho, representando ser Paulo de Tarso, um fiel representante do poder terreno daquela época, mas também qualquer um que vive a sua espiritualidade, com foco no aspecto formal, nos ritos e nas palavras, nos aspectos exteriores, o eu lírico reflete sobre a relevância daquilo tudo que ele faz para o seu processo de melhora interior.
Sente que fazia muitas coisas, fazia o que lhe era exigido, seus deveres, mas faltava um algo mais. Todos nós vivemos essa crise de fé, na qual sopesamos a vivência da nossa espiritualidade e os propósitos daquilo tudo, da nossa existência. Esse é um movimento natural e nós espíritas precisamos e devemos conviver com a dúvida e a reflexão em relação a nossa fé, questionando a nossa prática e ainda, como ela se reflete dentro de nós.
E tentar me encontrar, e tentar me conhecer, Senhor.
Ser mais um em Seu rebanho a caminhar.
Não me cabe só falar, também cabe agir e me tornar
Um instrumento Seu a melhorar.
No refrão da música, surge a ideia central, de que tudo isso que fazemos na vivência de nossa espiritualidade, é um instrumento para nos tornarmos melhores. Que as palavras, se não encontrarem eco no nosso agir, serão vazias, ausentes de significados. Que a verdadeira espiritualidade é uma viagem de dentro para fora e de fora para dentro, fazendo sentido tanto no mundo real, como no nosso mundo interior.
E assim nos encontramos, como Paulo na porta de Damasco, que bradou o seu “Senhor, o que queres que eu faça”, dúvida comum a todos nós, na eterna busca de um sentido para a existência, e que tentamos sanar na espiritualidade. A música mostra que o caminho é seguir o senhor, mas sendo um instrumento seu no mundo, a melhorar.
Senhor, em Seu nome… Senhor, em Seu nome…
Eu fazia muitos planos, mas os anos seguem em frente
E nos fazem ver quem somos… cometemos mil enganos…
Eu queria ser o leme, mas agia como âncora,
Retardando o meu caminho, sou o meu próprio espinho.
Faltava me mudar…
Aprofundando mais a reflexão a porta de Damasco, ou à porta da sua crise de fé, o eu lírico se vê defrontado com a consciência da sua própria imperfeição, com a decepção do seu ser real frente ao idealizado, na frustração dos planos não atingidos. Nos enganos e nos erros que ao invés de o guiarem nesse aprimoramento, serviram de âncora e espinho, como instrumento de estagnação e de sofrimento.
Entende ele que precisa mudar, converter esses erros do passado em um combustível para, de volta ao refrão, se encontrar e se conhecer melhor, para atingir a transcendência proposta de ser um instrumento do senhor em continuo aperfeiçoamento na interação com o próximo e consigo mesmo, superando o conflito e a dúvida, adquirindo assim um novo sentido para a sua vida, como fez Paulo na passagem evangélica.
Tantas reflexões numa música tão singela, e ao mesmo tempo, tão bela. O mundo moderno, com seu ritmo, cobra do indivíduo ações, posturas, ritos e ele entra num ritmo frenético que o conduz, por fim, a uma crise. Essa música nos traz uma excelente reflexão para esses momentos, nos lembrando de harmonizar nosso interior como o nosso exterior, em um equilíbrio dinâmico no qual ambos são relevantes.
O consolador – Artigos