Autor: Leonardo Marmo Moreira
A correta interpretação do Evangelho é um grande desafio para todos os estudantes sinceros do Cristianismo. As conhecidas limitações do texto tornam o seu estudo uma tarefa intrincada, apesar de serem os Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João lidos e estudados pelo mundo ocidental há quase dois mil anos.
Allan Kardec demonstrou muito cuidado e perspicácia a fim de evitar que os estudos das mensagens de Jesus à luz do pensamento espírita sofressem com as limitações oriundas das tradições, o que é inerente aos debates em que predominam a literalidade ou o excessivo apego aos dogmas. Em “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, sobretudo nos capítulos “Moral Estranha” e “Não vim destruir a Lei”, é possível perceber a estratégia de estudo de Allan Kardec para contornar as dificuldades inerentes a esse estudo.
O Codificador, por exemplo, passa ao largo do Velho Testamento, provavelmente por perceber que somente o Evangelho já detinha a essência do pensamento superior e que o volumoso e contraditório texto do Antigo Testamento não teria muito a acrescentar ao que Jesus estabeleceu. Em relação ao Apocalipse, também em voga na atualidade, também constatamos algo parecido, ou seja, não se trata de estudo que recebeu destaque de Allan Kardec, provavelmente por motivos semelhantes àqueles que fizeram o Mestre de Lyon a não priorizar o texto do Antigo Testamento.
Ainda assim, o movimento espírita não passou incólume às polêmicas centradas no Evangelho e na figura de Jesus de Nazaré propriamente considerado. Mensagens mediúnicas sobre o Evangelho, por exemplo, com frequência mutuamente divergentes, fomentaram fragmentações do movimento espírita devido a interpretações e até mesmo prioridades doutrinárias significativamente distintas.
Como estudar o Evangelho?
Em nosso movimento espírita atual, tem crescido uma tendência de estudo bíblico de maneira bem semelhante ao tipo de estudo desenvolvido por padres católicos e pastores protestantes, nos quais a literalidade e a tradição religiosa, inclusive a tradição judaica, tem recebido grande destaque. Alguns confrades citam, inclusive, o benfeitor espiritual Emmanuel, como referência desse tipo de abordagem e/ou estratégia de estudo evangélico. No entanto, seria interessante notar que Emmanuel discute os versículos, em seus chamados “livros de mensagens”, de uma forma bem particular, buscando aprofundar nuances do pensamento espírita-cristão, através de reflexões filosófico-religiosas de grande profundidade moral, sem se apegar, de forma alguma, à excessiva literalidade ou às tradições.
O Evangelho contempla ações, vivências, curas e pregações e/ou ensinamentos propriamente ditos. Dentro das pregações, dois tipos de exposições orais merecem destaques: Os aforismos e as parábolas, sendo que dentre as parábolas, percebe-se a existência de algumas mais simples, diretas e curtas e outras mais elaboradas e longas.
Se analisarmos a questão meramente textual, percebemos que nas parábolas mais longas, a probabilidade do pensamento original de Jesus ser parcial ou totalmente perdido por eventuais erros de tradução, interpolações ou adulterações deveria ser, em princípio, menor. Isso ocorreria não somente pelo número maior de termos e/ou expressões, mas também pela própria coerência da linha narrativa. De fato, um erro de tradução, acentuação ou pontuação, em teoria, deveria ter um impacto interpretativo maior em uma frase de efeito do que em um texto mais longo que representa uma narrativa.
De qualquer maneira, usualmente, as parábolas têm sido estudadas predominantemente de forma isolada. De fato, é comum no movimento espírita que uma determinada parábola seja o tema de uma palestra e que essa respectiva exposição seja focada fundamentalmente sobre a interpretação desse texto evangélico especificamente.
No entanto, se além dessa estratégia didática, o estudo em conjunto das parábolas fosse desenvolvido, é possível que uma compreensão mais ampla do Evangelho à luz da Doutrina Espírita fosse alcançado. Realmente, se duas ou mais parábolas fossem analisadas em conjunto, poderíamos ter uma segurança muito maior para decodificar o pensamento de Jesus, ou seja, teríamos mais consciência dos conceitos fundamentais que o Mestre desejou frisar em suas propostas didáticas.
De fato, se selecionarmos em torno de 12 a 14 das parábolas mais elaboradas e longas de Jesus, ficaremos impressionados com a corroboração de significativo número delas e com a reiterada ênfase que o Mestre de Nazaré frisou em alguns conceitos/ensinos fundamentais. É interessante perceber que nem sempre tais conceitos são notados e muito menos frisados em pregações cristãs, e mesmo espíritas, o que é estranho se notarmos o quão repetidas são algumas propostas.
A presente proposta de estudo em conjunto das parábolas de Jesus seria uma espécie de estratégia de estudo semelhante ao chamado “Controle da Concordância Universal do Ensino dos Espíritos” (CCUEE) (ou simplesmente “Universalidade do Ensino dos Espíritos” (UEE)), método que Allan Kardec utilizou e propôs que nós, espíritas, utilizássemos para avaliar a credibilidade do conteúdo de mensagens mediúnicas. Por conseguinte, o presente método de estudo poderia ser chamado de “Controle da Concordância do Ensino das Parábolas” (CCEP).
Assim sendo, buscaríamos a leitura e o entendimento das Parábolas, tentando inferir os conceitos fundamentais de cada uma delas, visando avaliar corroborações com outros conceitos obtidos de outras parábolas (e, eventualmente, discordâncias, o que poderia sugerir interpolações ou adulterações a que o texto possa ter sido submetido), e, principalmente, se haveria uma sistemática repetição de alguns desses conceitos principais pelo menos em algumas delas.
Para tanto, e apenas com fins didáticos e preliminares, buscaremos, a seguir, frisar algumas inferências de cada uma das Parábolas selecionadas. Vejamos:
Parábola do Filho Pródigo
– Deus é Pai e é misericórdia, o que denota, indiretamente, que o Inferno eterno não existe.
– Não se compare com seu próximo, principalmente para se promover, e não dispute com seu irmão, sobretudo quando for para desvalorizá-lo.
– Lei de Progresso (necessidade de modificação para melhor, aproveitando das experiências, sendo que isso não só é esperado como é estimulado/promovido pela Providência Divina).
Parábola da Ovelha Perdida ou Desgarrada
– Deus é Pai e é misericórdia, o que denota, indiretamente, que o Inferno eterno não existe.
– É necessário assistir os necessitados (o que é destacado em outras passagens, tais como: “Todas as vezes que fizestes isso a um destes mais pequeninos, a mim fizestes”)
– Lei de Progresso (necessidade de modificação para melhor, aproveitando das experiências, sendo que isso não só é esperado como é estimulado/promovido pela Providência Divina).
Parábola dos Talentos
– Lei do Trabalho (necessidade de esforço e de experiência para adquirir conhecimento e crescimento pessoal)
– Lei de Causa e Efeito (funcionamento do MÉRITO dentro da Lei Divina, o que fica evidente na passagem “conforme a sua capacidade”. Vide passagem evangélica: “A cada um segundo suas obras”).
– Necessidade de Coragem (essa é uma virtude que tem sido pouco destacada em pregações, mas seria fundamental para que o Espírito imortal se dispusesse e efetivamente enfrentasse as várias situações que promovem o seu desenvolvimento intelecto-moral).
– Empate na recompensa (aquele que recebeu dois talentos produziu mais dois talentos e o que recebeu cinco talentos produziu mais cinco talentos, sendo igualmente festejados), o que, indiretamente, remete a uma interpretação gerada na “Parábola do Filho Pródigo”, registrada a seguir.
– Não se compare com seu próximo, principalmente para se promover, e não dispute com seu irmão, sobretudo quando for para desvalorizá-lo.
Parábola do Semeador
– Lei do Trabalho (a produtividade no bem é o que diferencia o solo bom dos solos mais problemáticos)
– Lei de Causa e Efeito (funcionamento do MÉRITO dentro da Lei Divina)
– Necessidade de Vigilância (Perigos e cuidados necessários para administrar o livre-arbítrio na vida física – isto é, na reencarnação -, o que fica evidente na descrição dos solos pedregoso e espinhoso, que já apresentou predisposição à produção, mas que não chegam a ser produtivos).
– Empate na recompensa (os solos que produziram 30, 60 e 100 por um foram igualmente considerados “solos bons”).
Parábola do Publicano e do Fariseu
– Deus é Pai e é misericórdia, o que denota, indiretamente, que o Inferno eterno não existe.
– Importância da Fé em Deus, consciência da imortalidade e eficácia da prece.
– Não se compare com seu próximo, principalmente para se promover, e não dispute com seu irmão, sobretudo quando for para desvalorizá-lo (vide a passagem evangélica do “cisco e da trave”.
– Lei de Progresso (necessidade de autoconhecimento, visando ao autoaperfeiçoamento – vide “O cisco e a trave”).
Parábola do Joio e do Trigo
– O tempo como importante dádiva/oportunidade divina (seria um “talento” divino, utilizando a “Parábola dos Talentos” como referência).
– Lei de Progresso (o progresso requer tempo e, usualmente, a evolução dos usos e costumes pode não ser a mais adequada em alguns setores da experiência humana. No entanto, esse tipo de limitação é natural e deve ser compreendida dentro desse processo educacional).
– Destaque para a necessidade da coexistência de Espíritos com evolução diferenciada, como processo educacional para os dois grupos (os mais evoluídos são exemplos/referências para os menos evoluídos e os menos adiantados são testes de paciência, dedicação e lucidez para os mais aptos).
Parábola do Bom Samaritano
– Necessidade de solidariedade através da caridade material.
– Importância da eliminação de preconceitos
– Parceria na execução do bem (necessidade de aprender a trabalhar em equipe, ou seja, ajudar a quem ajuda)
– Necessidade de compaixão.
Parábola do Credor Incompassivo
– Deus é Pai e é misericórdia, o que denota, indiretamente, que o Inferno eterno não existe.
– O Inferno eterno não existe (o endividado ficaria preso ATÉ que pagar o débito, denotando que existiria sempre a possibilidade do pagamento, isto é, da quitação da dívida)
– Necessidade de Perdão.
– Necessidade de Gratidão.
– Não se compare com seu próximo, principalmente para se promover, e não dispute com seu irmão, sobretudo quando for para desvalorizá-lo.
– Necessidade de autocrítica (vide a passagem do “cisco e da trave” e a própria “Parábola Fariseu e do Publicano”).
Parábola do Rico e de Lázaro
– Necessidade de solidariedade através da caridade material.
– Existência do Mundo Espiritual.
– Existência de barreiras vibratórias no mundo espiritual.
– Permanência de valores familiares no mundo espiritual (preocupação com os seres amados).
– Mediunidade como fonte de informações sobre o mundo espiritual.
– Tradições religiosas como fonte de conhecimento espiritual e geradora de responsabilidade espiritual.
– Discussão da pouca eficácia educativa do fenômeno mediúnico isolado, sem uma análise filosófico-religiosa desse respectivo fenômeno.
Parábola dos Trabalhadores do Última Hora
– Necessidade de aproveitamento do tempo.
– Não se compare com seu próximo, principalmente para se promover, e não dispute com seu irmão, sobretudo quando for para desvalorizá-lo.
– Interessante discussão sobre a comparação bondade versus conjunto de boas ações (nem sempre quem fez mais ações de bondade será necessariamente o mais bondoso, muito embora não há como ser bondoso sem fazer bondade).
Parábola do Administrador Infiel
– Necessidade de gerar uma “corrente de simpatia” (conceito discutido por Emmanuel e André Luiz. Poderia ser feita uma leve correlação entre a “corrente de simpatia” com a chamada “interseção”).
– Lei de Progresso (Se não pudermos ter um aproveitamento total das oportunidades evolutivas, o aproveitamento parcial já é conquista razoável).
Parábola do Amigo Importuno e Parábola do Juiz Iníquo
– O valor intrínseco e imperdível do bem praticado, mesmo que esse bem seja efetuado de forma bem imperfeita.
É interessante notar como alguns ensinamentos são ilustrados e reiterados em várias Parábolas, tais como Deus como Pai misericordioso e a necessidade de melhoria pessoal, caracterizando a Lei de Progresso. Também é possível notar que Jesus rejeita duramente as comparações/disputas em que nos colocamos em relação a nossos irmãos para destacar nossas qualidades. Por outro lado, Jesus recomenda uma ativa ação de solidariedade, com destaque para a caridade material, assim como um permanente espírito de compaixão, não só como sentimento, mas também como ação efetiva. É possível notar que Jesus meio que iguala as recompensas pela produtividade no bem, permitindo inferir que a Lei de Deus nota o contexto de dificuldade ou facilidade em que determinada produção no bem foi feita assim como o nível evolutivo em que o Espírito estava ao iniciar essa tarefa no bem. É possível notar esse sentido de proporção da produção no bem esperada pela Espiritualidade Maior em relação ao nível de preparo prévio do Espírito desenvolvedor da respectiva tarefa, o que indiretamente sugere a Lei de Progresso.
Há um tema que recebe grande destaque em algumas Parábolas que seria o aproveitamento das diversas oportunidades evolutivas, tais como recursos materiais e o próprio tempo, e o valor intrínseco do bem praticado, mesmo por um Espírito que claramente ainda apresenta deficiências morais.
Tema como o funcionamento do mundo espiritual pode ser inferido na “Parábola do Rico e de Lázaro”, mas não se trata de tema reiterado em vários textos, pelo menos, de forma mais direta.
A presente estratégia de estudo poderia ser mais ampliada, abrangendo outras parábolas e os próprios aforismos do Cristo. Acreditamos que esse tipo de abordagem seria uma alternativa mais segura doutrinariamente e seguiria, de forma mais coerente, a maneira de estudar de nosso Codificador, Allan Kardec.
O consolador – Ano 14 – N 679 – Especial