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Verdade e mentira

Autor: Ricardo Baesso de Oliveira

Considerando a hipocrisia como a imperfeição moral que faz com que o indivíduo aparente ser o que não é de verdade, a virtude que se opõe a ela é a sinceridade. A sinceridade é a virtude que rege nossas relações com a verdade, ou o respeito à verdade com a exclusão da mentira. A pessoa sincera identifica seus atos e palavras com sua vida interior e não mente a outrem; preocupa-se mais com a verdade do que com a opinião pública, fala e age abertamente.  Ela nos mostra tais como somos sem disfarce. Trata-se, enfim, de amar a verdade mais que a si mesmo.

Uma discussão filosófico-moral em torno da sinceridade, e que, ocasionalmente, travamos em nossos estudos espíritas, é a de que até aonde vamos levar a verdade.

A verdade sempre e acima de tudo, dizem alguns. A verdade será sempre a meta e o ideal, mas a inverdade pode ser o mal menor, garantem outros.

Quem mais aguerridamente defendeu a ideia da verdade em qualquer circunstância, independente de suas possíveis consequências, foi o filósofo alemão do século XVIII, Immanuel Kant. Segundo ele, a mentira não apenas nunca é uma virtude, como é sempre uma falta, sempre um crime, sempre uma indignidade. Como a verdade é um dever absoluto, ela vale em todas as circunstâncias, não tolera a menor exceção. A intenção aqui não entra em jogo. Não há mentira piedosa, nem generosa; toda mentira é condenável.

Os estoicos pensavam de forma equivalente. Marco Aurélio, em suas Meditações diz:

Verdade não é senão um outro nome da Natureza, a criadora original de todas as coisas verdadeiras. Assim, uma mentira propositada é pecado porque a fraude é um ato de injustiça, uma mentira involuntária é também pecado porque é uma nota dissonante na harmonia da Natureza e cria a desordem sediciosa num universo organizado.[i]

Kant encontrou discordâncias em sua própria época, antes dele e depois dele. Aristóteles, na antiguidade grega, Baruch Espinoza (século XVII), Benjamin Constant (século XVIII) e no século XX, Vladimir Jankélévitch, professor da Sorbonne, morto em 1985, não proibiam em absoluto a mentira.

André Comte-Sponville, reproduzindo a forma de pensar dos três autores citados, comenta que se for necessário mentir para resistir à barbárie, para salvar a quem se ama, ou a um inocente, não há a menor dúvida de que se deva mentir, quando não há outro meio, ou quando todos os outros meios seriam piores. Às vezes, é preciso se contentar com o mal menor, e a mentira pode sê-lo.[ii]

Se assassinos lhe perguntassem se seu amigo, ou um inocente que eles perseguem, está refugiado em sua casa, a verdade seria a opção adequada? Ou se um moribundo que nunca soube lidar com situações difíceis desejasse saber seu real estado de saúde, dizer-lhe que a morte se aproxima, seria o mais desejado?

Prossegue Sponville: é dar muita importância a si mesmo, tão preocupado com sua integridade, com sua dignidade, que, para se preservar, está disposto a entregar um inocente a um assassino, ou um doente terminal ao desespero.

Na literatura espírita temos a considerar o pensamento de Emmanuel, exposto no livro O consolador. O benfeitor define a mentira como a ação capciosa que visa ao proveito imediato de si mesmo, em detrimento dos interesses alheios em sua feição legítima e sagrada.[iii]

Na proposta conceitual de Emmanuel, a mentira se identifica com a ação interesseira, maldosa, de quem falseia uma dada situação com objetivos escusos. A mentira seria a deturpação da verdade para conseguir-se algo, prejudicando alguém. Se negocio um veículo várias vezes abalroado, afirmando ao comprador que se trata de um carro que nunca se acidentou, isso é mentir, segundo a definição de Emmanuel.

Assegura ainda Emmanuel que deixar a verdade para mais tarde, ou matizá-la, não é mentir: a mentira não é ato de guardar a verdade para o momento oportuno […] é imprescindível o melhor critério amoroso na distribuição dos bens da verdade, porquanto esses bens devem ser fornecidos de acordo com a capacidade de compreensão do Espírito a que se destina o ensinamento, de maneira que o esforço não se faça acompanhar de resultados contraproducentes.[iv]

A posição de Emmanuel ante a inverdade caridosa se explicita no livro Renúncia, quando Alcíone, o personagem principal da obra, Espírito de alta condição evolutiva, engana a mãezinha para evitar que ela sofra. Coloca o autor: […] amparada por uma força invisível que jamais conseguiria definir, abraçando a mãezinha doente, sentiu que era indispensável mentir para confortar; esconder a verdade dura, de modo a não abrir chagas mais cruéis. Sentindo-se forte e bem-disposta ao influxo das forças desconhecidas que a amparavam, beijou a enferma com muito carinho, enquanto esta a interrogava com um sorriso de confiança […]

Joanna de Ângelis, por sua vez, coloca que a verdade reflete luz mirífica, aclaradora de incógnitas, que jamais fere ou aflige. É como pão, que deve ser ingerido sem exagero, ou como linfa, que merece ser sorvida na quantidade exata. À medida que nutre e dessedenta, acalma e felicita, enriquecendo de compreensão e afabilidade aquele que a penetra. Jamais a apliques com dureza, qual se fosse uma arma para destruir os outros, pois que, assim tornada, perde a finalidade precípua que é a de libertar.[v]

E ainda, Joanna: sê amigo da verdade, sem a transformares numa arma de destruição ou de ofensa […] Ademais, a tua pode não ser a verdade real, senão, um reflexo dela. E mesmo que o fosse, não estás autorizado a esgrimi-la com finalidades perturbadoras.[vi]

Concluindo, talvez possamos relacionar o mal menor de certas inverdades com a violência em situações em que a não violência não é eficaz. A não violência, levada ao extremo, em determinadas situações, poderia deixar o campo livre para o delinquente, além do que deixaria pessoas inocentes nas mãos dos criminosos. [vii]

Quem não lutaria para salvar uma criança nas mãos de um malfeitor? Como agir, por exemplo, se uma mulher é atacada por um estuprador? Se não for possível evitar o mal de outra forma, a violência se impõe.

E talvez possamos, também, relacionar uma possível inverdade com a necessidade de tornar pública a imperfeição e os erros alheios. Kardec admite que existem situações em que tal atitude possa se justificar, quando tem por objetivo reprimir o mal ou evitar um mal maior.[viii]

Mentir, valer-se de violência ou tornar pública a imperfeição alheia são atitudes que nunca serão as ideais, que nunca devem ser comemoradas, mas em um mundo em que predominam o mal e a ignorância, algumas vezes, são as únicas opções que nos restam. Kardec admite que, embora o mal nunca deixe de ser um mal, às vezes torna-se necessário.[ix]

Referências

[i] Meditações, livro 9, item 1.

[ii] Pequeno tratado das grandes virtudes.

[iii] O consolador, item 192.

[iv] O consolador, item 193.

[v] Vida feliz, cap. 139.

[vi] Vida feliz, cap.143.

[vii] O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. 12, item 8.

[viii] O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. 10, item 21.

[ix] O Livro dos Espíritos, item 638.

O consolador – Artigos

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