Autora: Eleni Frangatos
Carrego ao colo o meu filho de dois anos de idade. Eu o seguro de lado, encaixado sobre a minha anca, sobraçando-o pela cintura com o braço direito como sempre faço. O tênis pequenino, riscado de várias cores, a sunga e a camiseta estampada, de cores garridas, o boné amarelo de que ele, de cima de sua pequenez, tanto gosta. De repente, no meio da picada africana, surge, à minha esquerda, um barracão do tipo colonial coberto com chapas de zinco – construção que, ainda hoje, se encontra pelo interior da África – bem antigo, abandonado, em ruínas, outrora utilizado como estação ferroviária em lugarejos perdidos aqui e além na vastidão africana, resquício do domínio do Império Britânico. Bem próximo um pequeno muro de enormes pedras, algumas já soltas pela ação do tempo e do vento, caídas no chão. Nele encostado, apoiado a um nodoso cajado, está um negro, velho, encarquilhado, amplo chapéu de palha, da idade de seu dono, inclinado por sobre os olhos. Na boca, um cachimbo artesanal, bem rudimentar. Mais além, um rio caudaloso, de águas barrentas.
Aproximo-me do velho, cumprimento-o com o respeito que da idade lhe advém e pergunto se posso tomar banho naquele rio, se o rio tem crocodilos. Faço essa pergunta sem saber a razão, porque, na verdade, não tenho a mínima intenção de entrar naquelas águas escuras e muito menos com meu filho à ilharga.
Com uma expressão longínqua e uma lentidão de quem já cansou de ver o tempo passar, afasta o cachimbo dos lábios e uma tênue fumaça se enovela no espaço.
– Você é quem sabe. A vida é um rio. Com ou sem crocodilos, sempre existem perigos. Só você vai saber se quer ou não entrar nesse rio. O risco é todo seu.
Quando ia continuar o diálogo, o velho, num passe de mágica, sumiu.
Olho para a minha direita. Meus falecidos avós, de mãos dadas, caminham para mim, sorrindo. Numa fração de segundo, não estão mais lá.
Na minha frente o rio caudaloso, largo, imponente. Nas margens, vegetação rasteira, pequenos arbustos. A água lamacenta corre para a foz num rumorejar constante. Aqui e além, circunda um ou outro pedregulho, ou pé de vegetação, e continua correndo para o seu destino. Infunde respeito.
Caminho na sua direção. A cada passo, a água, como por encanto, fica mais e mais clara. Na metade do rio, à minha esquerda, corre agora uma água cristalina, transparente. Do meu lado direito, porém, a água continua turva, lamacenta e espessa.
De repente, um barulho ensurdecedor…
Paro a certa distância da margem. Um peixe enorme. Nunca vi um peixe assim. Lembra um boto, que tivesse cruzado com um peixe-serra, de bico pontudo e comprido, cinza claro prateado, mesclado de manchas coloridas, como um arco-íris aquático. É lindo! O peixe se desloca em movimentos extremamente vagarosos, nada entrando e saindo da água, desenha lentamente vários arcos imaginários, exibindo toda a sua beleza, esparramando a água em pequenas gotículas douradas e prateadas.
De repente, um barulho ensurdecedor… do meu lado direito; a água escura e barrenta, de um marrom avermelhado, se agita, revolve e grandes quantidades de água se elevam, enquanto bolhas enormes de oxigênio se desprendem na superfície. Um volume indefinido começa a emergir. Involuntariamente me lembro do monstro do Lago Ness na Escócia. Olho o rostinho de meu filho. Imperturbável. Nem um sinal de medo. É como se nada visse. Para minha surpresa, eu também não sinto qualquer receio.
A massa, saindo do meio das águas lamacentas, começa a ganhar contornos.
Um negro enorme, gigantesco, ergue-se na minha frente. A água escorre pelo corpo hercúleo, que agora rebrilha à luz do sol. Um corpo atlético, musculoso, proporcional, uma verdadeira estátua grega de ébano. Um pano preto, preso nas ancas, cobre-lhe o sexo. As pernas separadas, os braços ligeiramente afastados do corpo, o abdome retesado num feixe de músculos. O corpo ligeiramente arqueado, curvado para frente na minha direção. O cabelo negro, espesso, abundante, eleva-se sobre a cabeça em três níveis, como que sobre uma estrutura própria, caindo profusamente até à altura dos ombros. Estranhamente é cabelo liso e não o crespo característico dos negros daquela região.
Ele me olha. Os seus olhos são negros e cintilantes. O brilho do olhar é indescritível. Começo a sentir paz, uma sensação de que nada de ruim pode acontecer, uma segurança total. Meu filho desaparece de meus braços e nem mesmo esse fato me assusta, nem me preocupa.
O olhar desse ser lindo encontra o meu e fico estática, enlevada, sem conseguir desviar os meus olhos, como se daquele olhar dependesse a minha vida. Esse homem sabe tudo, tudo, a meu respeito. Eu não preciso dizer nada.
Zimbábue era seu nome
A voz dele faz-se ouvir sonora, forte sem ser agressiva, segura, transmitindo a certeza que só milênios de conhecimento fazem adquirir.
– Eu sou Zimbábue. Sou um guerreiro africano. Vivi há muitos, muitos anos, num tempo que não dá mais para contar. Combato toda e qualquer injustiça e protejo quem precisa de ajuda. Vim para lhe mostrar o caminho a ser seguido. Foi isso que você, finalmente, pediu hoje. Aqui estou. Sempre estive ao seu lado, mas só hoje você pediu ajuda para lidar com a sua vida. Você tem livre-arbítrio. Pode fazer o que quiser. Mas, sempre que se sentir sem forças, chame por mim. Eu virei em seu socorro. Você não está só. Você está sem forças, sem energia, triste, muito triste, porque você não está querendo entregar-se à sua missão na Terra. Não tenha medo de viver. Você é uma guerreira de luz, assim como eu. Guerreiros sofrem, sentem o sofrimento com uma intensidade muito grande, dão-se às outras pessoas, são incompreendidos, às vezes injustiçados, mas lutam, sempre lutam. Não a luta que você tem abraçado. Você tem lutado por valores que, para um verdadeiro guerreiro, nada significam. Tem usado o seu tempo e energia em questões frívolas, tão insignificantes em relação a todo o Universo… Por isso, a sua luta tem sido inglória. A sua luta, a verdadeira luta, está começando agora, se você assim o quiser. É a luta do guerreiro, é a luta da entrega total. Não existe maior, nem mais difícil e dolorosa luta do que a da entrega total. Se você quiser, vencerá. Está sem forças, não quer mais lutar, porque não tem mais sonhos, não acredita neles, não acredita no ser humano, não acredita em você mesma. Tudo aquilo pelo qual você tem lutado sempre envolveu alguma segunda intenção, algum interesse. Esse é o motivo de tanto insucesso. Eu estou aqui para ajudá-la. Tenho aguardado por você em silêncio. O seu momento de maturação. Nada podia fazer, se você primeiro não o quisesse. Sua hora chegou. De hoje em diante, coisas que você achava esquisitas, malucas, produto de sua imaginação num passado próximo, começarão a ser compreendias e você as aceitará. A dúvida, que a tem atormentado durante estes longos anos sobre espíritos e vida após a morte, se desvanecerá. Tudo mudará na sua vida, é só você mudar a sua atitude. Pare de pensar que os acontecimentos são “coincidências”. Observe o seu passado. Quantas “coincidências” você deixou passar por não acreditar nelas? Você tem sido a exterminadora de seus próprios sonhos.
Zimbábue levanta os braços, vira as palmas das mãos na minha direção. O olhar parece fogo me consumindo. Das palmas saem dois feixes de luz. Um dos feixes de luz se dirige para o meu coração. O outro feixe focaliza um ponto no meio dos meus olhos. Um sopro contido sai dos seus lábios como se toda uma energia interior estivesse passando daquele ser para mim.
Foi tudo um simples sonho?
Acordo, atordoada, estremunhada, suando copiosamente, sem saber onde estou. Alguns minutos depois, muito lentamente, reconheço o meu quarto, a minha cama. Levanto-me. Pego uma toalha e enxugo o corpo. Vou para a varanda – um décimo andar – de onde vislumbro a praia de Boa Viagem. Estou na cidade de Recife. Uma lua enorme, como que dependurada sobre o mar. O calor é sufocante, entremeado por uma leve brisa que sopra do mar.
Revejo o sonho. O meu filho com dois anos apenas. Vinte e cinco anos haviam decorrido. Meus avós, falecidos e enterrados lá na longínqua África, onde eu nascera e de onde havia saído para o Brasil. Vinte e cinco anos…
Quanta emoção represada, calcada, empurrada para o fundo do meu coração, quantas lutas em vão, sofrimento, decepção, desilusão, dúvida, insegurança, ressentimento, rejeição, carência, a solidão me corroendo aos poucos por dentro, dor, dor, dor, com a qual eu nunca soubera lidar.
Cadê meus sonhos? Que fizera da minha vida? Onde havia ficado perdida aquela menininha de louras tranças, olhos azuis, cheios de esperança? Por que sempre ignorava dentro de mim minha infância, minha família? Por que tanto medo de pensar nelas?
Minha vida era uma coleção de perdas, um amontoado de despedidas. Adeus! Adeus! Adeus! Quantas vezes, eu pronunciara essa palavra chorando copiosamente? Havia perdido a conta. Adeus a meu pai, meu herói, meus avós, à cidade onde nasci e a meu marido, a bons empregos, a cidades onde vivi; aos amigos a quem deixei… Amores… Meu filho – sempre adeus, adeus, adeus. Não suportava mais qualquer tipo de despedida…
E eu lutava. Lutava muito. Ultimamente, nem lutava mais – estrebuchava, estrebuchava enquanto os garrotes da vida me imobilizavam cada vez mais, destruindo a possibilidade de realizar qualquer sonho, me lanhando o coração e alma. Para dizer a verdade, eu nem me dava ao trabalho de sonhar mais. Era como se a vida finalmente vencesse a leoa aguerrida e indomada, que existia em mim e o pior é que eu mesma, só eu, havia permitido tudo isso e, a cada dia, a cada minuto, eu sentia o meu estrebuchar cada vez mais fraco e isso me apavorava, um pânico devorava o meu coração, o meu raciocínio… Nada dava certo…
Quem era eu nesse momento? Para onde fora toda a minha garra, a minha força? Eu as perdera ao longo dos anos como a chama bruxuleante de uma vela que se apaga.
E agora sentia uma vontade enorme de voltar à África. Há quanto tempo não revia a minha família morando em Cape Town! Pensei: “estou ficando louca… viajar para a África agora… impossível”.
Ouvi a voz de Zimbábue: “Não lute contra você mesma. Não duvide. Entregue-se nas mãos do Espírito Superior. Ele endireitará seus caminhos. Tudo o que você quiser, verdadeiramente quiser de bom para você, virá bater à sua porta sem explicações”.
África, África, a minha terra. África misteriosa, quente, mística, de paisagens múltiplas, de nascer e pôr de sóis alucinantes, esplendorosos, inesquecíveis. África de sol tórrido, sangue fervendo nas veias, alucinações… Tudo muito intenso!
– Espírito Superior, Espírito de Luz, Zimbábue, sei lá quem quer que vocês sejam, me ajudem, estou muito cansada, muito cansada. Havia perdido tudo na guerra africana e obrigada a deixar meu país com um filho pequeno e um marido em estado de choque. E o Brasil me acolheu de braços abertos, mas no início não foi fácil. Vir para um país sem conhecer ninguém e sem dinheiro, nem sequer tivera tempo para chorar!
De repente, um choro convulsivo, um choro de anos e anos, explodiu em mim… Chorei, chorei muito até à exaustão.
Voltei para a cama e adormeci. Acordei com o telefone tocando. A voz alegre e cheia de entusiasmo de minha adorada irmã caçula, ligando de Cape Town, África do Sul.
– Maninha, surpresa! Ganhaste uma passagem para vires para cá – presente meu e de meu marido. Vem passar o Natal e o teu aniversário conosco! Vem carregar as tuas baterias conosco, maninha. Precisas voltar. Eu te amo, mana, e estou com muitas saudades tuas. Quando vens?
E eu, atônita, ouvindo, sem saber se sonhara antes, ou se estava sonhando naquele momento.
Esclarecimento importante
Este sonho/desdobramento aconteceu em Recife, em 1997. A partir desse sonho, tive vários outros e sempre a preocupação de, ao acordar, registrá-los, mas nunca esqueci os detalhes de nenhum deles.
Só 11 anos depois, já em Vinhedo, comecei a estudar a Doutrina Espírita e comecei a compreender verdadeiramente o significado desse sonho.
Praticamente 11 anos depois deste sonho, resolvi pesquisar sobre a origem deste guerreiro africano, de cabelo liso, de estatura enorme, de nome Zimbábue, que me acompanha ao longo da vida e que, em situações de extremo perigo, foi visto do meu lado por outras pessoas.
Alguns associaram o nome deste meu guia espiritual ao país hoje chamado de Zimbabwe. Porém este nome apenas foi adotado pela antiga Rodésia recentemente, em 1980, data de sua independência. Este guerreiro, porém, viveu alguns séculos antes.
Como nasci em Moçambique e a Rodésia/Zimbabwe tem fronteiras com a Zâmbia, Moçambique, África do Sul e Botswana e no sonho aparece um rio caudaloso e de grande largura, liguei esse fato ao Rio Limpopo. E os fatos começaram a aparecer: o Rio Limpopo é o segundo maior rio da região sul da África e serve de fronteira entre a África do Sul, o Botswana e Zimbabwe, antes de entrar no norte de Moçambique! Muita coincidência!
Comecei a ler mais e mais sobre a questão, sentindo aquele frenesi de quem finalmente está chegando à informação procurada.
E então, do nada, surgiu o seguinte:
Zimbabwe, ou Zimbábue (do dialeto xona, significa “casa de pedra”): está localizado num ponto comum entre Moçambique e o atual e recente país Zimbabwe.
Só que esta civilização aparece no primeiro milênio A.D. e foi, inclusive, tombada pela ONU como patrimônio histórico.
Conta-se que homens negros, de porte enorme, de cabelos lisos, talvez vindos do Antigo Egito, teriam descido até essa região e ali construído uma cidade de pedras enormes e muros altíssimos e ninguém sabe de onde vieram essas pedras. Dizem que estes seres de grande estatura e força, guerreiros sem medo, e com conhecimento desenvolvido em metalurgia, vieram de outros planetas e/ou em discos voadores.
Resumindo e simplificando: ninguém sabe até hoje de onde veio aquele povo, e nem como aquelas pedras foram parar ali, e o cabelo liso contrastando com o cabelo dos africanos daquele local é outro mistério.
Bem, eu que nasci em Moçambique, enquanto vivi no meu país, nunca soube desse local e só cheguei a ele, 11 anos depois de ter tido um sonho revelador com meu guia espiritual, Zimbábue!
Há coisas que não têm explicação, só um Espírita entende…
E pasmem! Um dia, do “nada” resolvi procurar alguém que desenhasse o Zimbábue, com base na descrição que fiz do sonho. Procurei e encontrei uma moça, que se prontificou a fazer o desenho. Não a conheci pessoalmente, apenas pela internet. Mandei apenas a descrição para ela e depois, já com o desenho pronto, ela me contou e outra coincidência: ela também é espírita… E a imagem do meu guia, eu diria, que está em 90% igual ao que vi no meu sonho.
O consolador – Ano 10 – N 508 – Especial